NEAFRAR









1. APRESENTAÇÃO

A proposta de criação do Núcleo de Estudos Étnicos e Afro-Brasileiros Abdias Nascimento-Ruth de Souza (NEAFRAR) pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Vale do São Francisco resulta de discussões efetuadas por docentes e discentes em vários campi engajados na valorização política, econômica e cultural das populações negras no Brasil, das mulheres e dos grupos LGBTs. Entre iniciativas precedentes, é preciso registrar, por exemplo, a publicação do documento “Algumas diretrizes para as ações afirmativas na UNIVASF: Cronograma para 2012-2013 - II Mês das Consciências Negras (Juazeiro, 25/10/2011)” e a primeira proposição oficial para constituição de um núcleo de estudos afro-brasileiros no Fórum de Ensino, Pesquisa e Extensão da UNIVASF realizado em 14/03/2012. 
Há uma crescente compreensão na UNIVASF de que estas questões no Brasil e na região do semiárido brasileiro precisam ser acompanhadas do interesse devido pela academia, na perspectiva de elaborar e veicular representações descolonizadas e descolonizadoras sobre a África e o Brasil africano, além de não machistas e não homofóbicas, que edificaram e edificam este país, percebendo-as também em sua positividade, riquezas e complexidade.
A despeito da Lei 10.639 de 2003, que estabelece diretrizes para inclusão obrigatória nos currículos da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e das políticas em prol da igualdade de gênero e anti-homofobia do governo federal nos últimos anos, os docentes e gestores que atuam na educação básica e mesmo no ensino superior têm dificuldade em inserir no planejamento escolar e em suas práticas cotidianas ações que contribuam para a compreensão do papel estratégico da História da África e das populações negras, na trajetória da sociedade brasileira. As dificuldades estão voltadas, também, para a criação de novos espaços e metodologias que questionem, e coloquem em pauta, problemáticas a respeitos das desigualdades de gênero e dos pressupostos heteronormativos que regem as práticas não só escolares e acadêmicas, mas também as que permeiam todas as esferas de nossa sociedade. 
O NEAFRAR emerge assim como espaço para desenvolvimento de estudos interdisciplinares no âmbito das Ciências Humanas e da Educação, promovendo, apoiando e/ou aglutinando iniciativas e potenciais em torno da questão racial, de gênero e sexualidade na UNIVASF e na sociedade envolvente a nossa instituição. A efervescência recente sobre a discussão sobre gênero, raça e etnia em nossa região, assim como a visibilidade da religiosidade afro-brasileira nas áreas de atuação da UNIVASF, indicam um potencial de ações de extensão, bem como de ensino e pesquisa, que urge ser incorporada à agência de curto, médio e longo prazo de nossa instituição, contribuindo desta maneira para a formação e/ou atualização de agentes na sociedade afinados ao movimento de promoção da igualdade a partir de ações afirmativas.
A expansão de programas de Ações Afirmativas nas instituições públicas de ensino superior na década de 2000 tem resultado em alterações neste cenário, em especial no que diz respeito à mudança da composição da população estudantil, com aumento significativo da presença de negros (pretos e pardos), indígenas e estudantes de baixa renda em geral. Contudo, a estrutura curricular que prevalece no interior dos cursos, bem como as práticas e representações cotidianas, ainda foram pouco alterados. Com a criação do NEAFRAR, a extensão na UNIVASF reconhece que é preciso institucionalizar os estudos étnico-raciais, de gênero e sexualidade, sinalizando a necessidade de consolidar, além da reserva de vagas, as transformações conceituais sobre igualdade e justiça social, efetivando o conceito de ações afirmativas no seu sentido mais amplo.

2. JUSTIFICATIVA

A dupla escolha de Abdias Nascimento e Ruth de Souza para dar nome ao Núcleo de Estudos Étnicos e Afro-Brasileiros da UNIVASF é o reconhecimento da influência das suas lutas e trajetórias em prol da resistência do povo negro à escravidão e ao racismo e a visibilidade da mulher negra em múltiplas esferas sociais.
Nascido em 1914, na cidade de Franca, São Paulo, Abdias do Nascimento foi um intelectual de vasta atuação, sendo dramaturgo, poeta e pintor, engajado na luta internacional pan-africanista e deputado federal, senador e secretário de estado.
Integrante do primeiro partido político negro do Brasil, a Frente Negra Brasileira (1931-1937), Abdias se graduou em economia com estudos de pós-graduação no Instituto Superior de Estudos Brasileiros, mas principalmente participou da organização de congressos, do Teatro Experimental do Negro, de jornais e museus até se tornar alvo da repressão policial do regime militar quando foi aos Estados Unidos em 1968, em razão das medidas autoritárias do Ato Institucional nº 5. Enquanto esteve no exílio, em especial nos Estados Unidos e na Nigéria, denunciou internacionalmente as várias formas de exclusão da população negra no Brasil ao tempo em que promovia sua singularidade.
Recebeu o título de professor emérito da Universidade do Estado de Nova York, onde fundou a Cátedra de Culturas Africanas no Novo Mundo do Centro de Estudos Porto-riquenhos. Foi professor visitante na Escola de Artes Dramáticas da Universidade Yale (1969-70); Visiting Fellow no Centro para as Humanidades, Universidade Wesleyan (1970-71); professor visitante do Departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade Temple, Filadélfia (1990-91) e professor visitante no Departamento de Línguas e Literaturas Africanas da Universidade Obafemi Awolowo, Ilé-Ifé,Nigéria (1976-77).
Uma das principais contribuições intelectuais de Abdias Nascimento, junto com outros intelectuais negros, foi a alternativa de vincular alternativas políticas e propostas teóricas no estudo da realidade social. Como resultado, é possível identificar o desenvolvimento de paradigmas epistemológicos voltados para a superação da dominação intelectual e política exercida por países coloniais ou neocoloniais sobre a academia e o discurso dominante de países oriundos da diáspora negra. Assim, ao lado de um conjunto de intelectuais em todo o mundo, Abdias Nascimento desenvolveu a proposta da “afrocentricidade”, um modo de compreensão da história mundial que superasse o atrelamento ao discurso e aos interesses das metrópoles internacionais.
No Brasil, Abdias Nascimento orientou o desenvolvimento de uma nova estratégia de organização intelectual de acadêmicos e militantes negros, o “quilombismo”. O quilombismo consiste não apenas na elaboração de uma estrutura prática e interpretativa diferenciada, mas de uma dinâmica política que se identifica com o compromisso com relação à superação da opressão social e violência política por que passam grupos historicamente alijados da modernização brasileira. Trata-se de uma metodologia de construção do processo democrático, pautado por um debate público afrocentrado que visa orientar a formulação de políticas sociais mais efetivas e igualitárias.
Deste modo, o quilombismo visa transpor hiatos arbitrariamente impostos entre o rigor acadêmico e o compromisso com a transformação social. Articula assim categorias fundamentais da nova fase política de países democráticos, tais como a reparação social; o multiculturalismo e a participação popular no desenvolvimento de um projeto sócio-político voltado para a construção de um novo modelo civilizatório para a sociedade brasileira, fundado nos pilares do respeito às diferenças culturais, da igualdade política e da solidariedade entre os povos. Trata-se da construção de um projeto de uma identidade nacional que valorize o que o Brasil tem de mais importante, qual seja, a composição multiétnica de sua sociedade.
Em 2006, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva condecorou Abdias Nascimento com a Ordem do Rio Branco no grau de Comendador. Em 2007, o Ministério da Cultura lhe outorga a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Cultural; em 2009 recebe do Ministério do Trabalho a Grã Cruz da Ordem do Mérito do Trabalho. Todos os três são as mais altas honrarias do Governo Federal do Brasil em suas respectivas áreas. Tardiamente a comunidade acadêmica brasileira reconheceu a atuação de Abdias, tendo recebido o título de Doutor Honoris Causa pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), UFBA (Universidade Federal da Bahia), UnB (Universidade de Brasília) e UNEB (Universidade do Estado da Bahia). A Universidade Obafemi Awolowo, Ilé-Ifé, da Nigéria também já havia lhe homenageado. É considerado como o mais completo intelectual e homem de cultura do mundo africano do século XX.
Contudo, ainda que seja crescente o número de intelectuais negros que tem suas trajetórias estudadas como Abdias Nascimento, ou, por exemplo o antropólogo Edison Carneiro, o sociólogo Guerreiro Ramos ou o poeta Solano Trindade, é preciso reconhecer o grande esteio da sobrevivência e força das populações negras no Brasil: a mulher negra.

Partindo desta consideração que se faz a proposição de homenagem à atriz de teatro, cinema e televisão Ruth de Souza. Uma das primeiras mulheres a participar do Teatro Experimental do Negro e um de seus primeiros membros a profissionalizar-se, Ruth de Souza é uma das primeiras atrizes negras a interpretar textos do repertório clássico além de comédias.

Nascida no Rio de Janeiro em 12 de maio de 1921 logrou ser uma das primeiras atrizes brasileiras a obter aprimoramento técnico e profissional nos Estados Unidos, através de uma bolsa de estudos concedida pela Fundação Rockfeller, entre 1951 e 1952. Ruth estudou as diversas etapas que envolvem a produção teatral e atuou como protagonista no espetáculo Dark of the moon. Ao retornar ao Brasil, sua qualificação profissional a levou a ingressar nas mais importantes companhias de cinema brasileira nas décadas de 1940 e 1950. Assim tornou-se a primeira entre os brasileiros e brasileiras a disputar um prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza em 1954.

Mas, ainda que a condição de atriz reconhecida no teatro, na televisão e no cinema, lhe conferisse certa visibilidade, isto não a impediu de perceber o peso das relações raciais desiguais em sua infância ou em sua carreira. Mesmo reconhecida internacionalmente, Ruth de Souza foi protagonista somente em duas obras da televisão: A Cabana do Pai Tomás (novela) e Quarto de Despejo (especial). Ainda assim, além do trabalho no teatro, participou de dezenas de trabalhos para a televisão como Senhora do Destino (2004) ou Duas caras (2008), e dezenas de filmes, mais de 30, como Assalto ao Trem Pagador (1962) e Filhas do Vento (2004).

3. OBJETIVOS

Objetivo Geral

O NEAFRAR tem por objetivo criar, legitimar e apoiar espaços para a produção de conhecimento, debate e formação interdisciplinar em raça, gênero e sexualidade, institucionalizando estas áreas na extensão, no ensino e na pesquisa, fortalecendo assim transformações conceituais e concretas para igualdade e justiça social na universidade e na sociedade como um todo numa dinâmica interdisciplinar.

Objetivos específicos

·  Consolidar o campo de estudos étnicos, africanos, de gênero e sexualidade na UNIVASF através de atividades de extensão, de forma integrada a atividades de pesquisa e ensino quer no nível da graduação quanto da pós-graduação;
· Desenvolver atividades de extensão, permanentes e eventuais, que atendam as demandas da sociedade na área de formação em estudos étnicos, afrobrasileiros, africano, de gênero e sexualidade;
·  Formar extensionistas e pesquisadores (as) na área de estudos étnicos, afro-brasileiros, africanos, assim como nas áreas de gênero e sexualidade;
·    Tornar acessível para todas as áreas do conhecimento a produção científica gerada pelo campo dos referidos estudos, com especial atenção para a produção científica de intelectuais negros no contexto da África e da Diáspora;
·  Construir parcerias com diferentes segmentos da sociedade, tais como órgãos governamentais e não governamentais, com o intuito de delinear políticas e implementar ações conjuntas que favoreçam um melhor entendimento das relações étnico-raciais, assim como de gênero e sexualidade no Brasil;
·         Realizar programas e projetos de extensão integrados com pesquisa e ensino;
·         Promover programas de formação profissional e educação continuada;
·    Desenvolver atividades culturais e de extensão, incluindo prestação de serviços e consultorias;
·         Fomentar a cooperação acadêmica entre Univasf, instituições e entidades da região e seus congêneres em países africanos;
·         Estabelecer canais de cooperação acadêmica e cultural com instituições nacionais e internacionais que atuem na área dos estudos étnicos, afrobrasileiros, africanos, de gênero e sexualidade, com vistas a contribuir para o debate de problemas políticos, culturais e econômicos, articulados com as questões centrais no campo em foco;
·         Contribuir no combate ao racismo, o sexismo, a homofobia e todas as formas de opressão e de discriminação na sociedade brasileira e na região do Vale do São Francisco;
·         Criar uma biblioteca especializada para apoiar os estudos e pesquisas na área;
·         Produzir documentários sobre as referidas temáticas e exibi-los na academia e nas comunidades.
·         Auxiliar na elaboração de políticas de inclusão e democratização da UNIVASF.

4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Os debates a respeito dos processos de modernização e desenvolvimento no século XX e XXI nas ciências sociais costumam atrelar determinadas características às cidades ocidentais que se contrapunham de forma cabal a certos alicerces que conferiam significado a práticas sociais antigas. Os novos modos de vida, considerados modernos pela literatura especializada, costumam estar atrelados a dois fatores significativos. O primeiro deles é o processo de desenvolvimento econômico que tem acontecido de alguns modos distintos no ocidente, como os baseados na industrialização, na tecnicização da produção agrícola e no avanço da ciência (este último geralmente atrelado aos dois primeiros). E o segundo diz respeito ao processo de modernização das relações sociais, baseadas agora em características como individuação, racionalização, despersonalização e horizontalização das relações, forte comunicação com mundos exteriores, além de marginalidade e segregação. A possível constatação desta relação poderia estar no surgimento dos novos modos de vida nas cidades ocidentais modernas. Estes estariam atrelados a novas perspectivas de encarar o “eu”, que, neste período, se mostravam emancipando-se de certas amarras como as sexuais, por exemplo. Estes novos modos de vida abririam portas para uma “sexualidade plástica”, ou seja, desatrelada da reprodução, e as suas consequentes ênfases em sexualidades outras, como a homossexualidade. Além de, também, abrir portas para novas formas de encarar o amor e o relacionamento, como a nomeada por Giddens como a de um “relacionamento puro”, porque desatrelado de qualquer outro condicionante que não apenas o próprio desejo de cada um em manter a relação (se entra na relação apenas pela relação e não por preceitos sociais, familiares ou políticos) (GIDDENS, 1993, p. 38 e 69). Estas novas perspectivas de “eu” e individualidade podem ser claramente percebidas nas grandes metrópoles principalmente no que tange ao surgimento e/ou visibilidade de novas identidades sexuais, como os transgêneros, as dragqueens, os opcionalmente sem identificação sexual, como também na reinterpretação de identidades antigas, como as de homem e mulher.

Diversos outros autores salientaram eventos que marcaram as mudanças nas concepções de gênero e sexualidade na modernidade. Sócrates Nolasco (NOLASCO, 1995), por exemplo, vai fazer uma relação entre a desconstrução do masculino, como uma crise da identidade masculina, e a transição para a modernidade. Para ele, neste período, o indivíduo tornar-se sincrético e confuso, o que faria com que alguns homens deixassem de recorrer à denominação do macho para nomear suas vivências, passando também a se referir a representações relacionadas ao universo feminino. Para ele, o masculino enquanto categoria universalizante e totalizadora estaria se tornando sem sentido. Neste mesmo sentido caminha em sua análise Cachetto (2004), que chega a falar de uma “crise da masculinidade”. Para ela, a crise da masculinidade se origina das transformações globais e geopolíticas ocorridas nos Estados Unidos desde o início do século XX, e seria explicada pelo afastamento de muitos homens do padrão considerado como socialmente hegemônico, que se referiam ao controle masculino do mercado sobre o trabalho, ao poder, à fama, ao controle das emoções e a comportamentos associados à virilidade. Neste processo de crise, demandas e conflitos oriundos da contradição entre a imagem do macho hegemônico (baseada no autocontrole, força e agressividade) e as reais formas de vida dos homens puderam ser entendidos, e identidades masculinas não baseadas no padrão puderem ser evidenciadas, como a dos homossexuais. Estas começaram a ser debatidas lançando luz sobre concepções, como as relacionadas às formas de desejo desatreladas das determinações biológicas, já contestadas pelo movimento feminista a partir da década de 60 do século XX no mundo ocidental.

No entanto, este modelo de transformação nas identidades sexuais e de gênero no período da modernidade, relacionadas a um processo que coaduna desenvolvimento social e econômico, se mostrou, e vem se mostrando deficitário em algumas regiões do Brasil. Durval de Albuquerque Júnior (2013) salienta algumas alterações que vinham ocorrendo na sociedade brasileira do início do século XX, como a inserção de novas profissões e profissionais, como os bacharéis; o aburguesamento do país com a inserção de um regime com propostas capitalistas e sua consequente industrialização; a entrada de imigrantes europeus e seus hábitos “modernos” de vida e comportamento, influenciados por um feminismo nascente, uma revolução na moda e trejeitos sofisticados de falar e viver; e a democratização das relações que inseriam os negros e mulheres cada vez mais enquanto cidadãos de direito. Estas alterações estavam caracterizando o país com modos que se afastavam cada vez mais de um ideal de sociedade baseada no patriarcalismo e na hierarquia de relações. Ao analisar este fenômeno o autor vai se referir a este momento como um processo de “feminização” da sociedade, visto que as mudanças de comportamento geradas por estes fatores levavam ao desenvolvimento de modos de vida muito mais relacionados às características ligadas ao polo feminino do que ao masculino (Albuquerque Júnior, 2013, p. 27-136).

Todavia, como ele mesmo salienta, em algumas regiões do nordeste o processo de “horizontalização de relações” não ocorreu assim como, supostamente, nas grandes capitais do Brasil. Uma modernidade muito mais pautada em um desenvolvimento econômico, muitas vezes centrado no agronegócio, vem se mostrando, desde a década de 60, muito mais visível. Na cidade foco deste projeto, Petrolina, no estado de Pernambuco, e Juazeiro, no estado da Bahia, inúmeros investimentos diretos do Estado, por meio SUDENE (Superintendência de desenvolvimento do Nordeste), EMBRAPA (Empresa brasileira de pesquisa agropecuária), CODEVASF (Companhia de desenvolvimento do Vale do São Francisco), CHESF (Companhia Hidroelétrica do São Francisco) e do Banco do Nordeste do Brasil vêm evidenciando um modelo típico de interpretação. Esta se relaciona à explicação de que os problemas da baixa produtividade na região estavam relacionados ao atraso técnico da agricultura – e não à concentração de terras baseada em latifúndios improdutivos como defendiam um ala dos políticos que estavam no poder antes do golpe militar de 1964 – e que uma alteração em seu padrão tecnológico conseguiria transformar a situação. (FRANCA, 2008, p.78). Estes inúmeros investimentos propiciaram um desenvolvimento econômico ascendente, porém carente em desenvolvimento social. Este fator pode ser notado, entre outras situações, na escassez de grupos e projetos efetivos no que tange às transformações nas desigualdades de gênero na região, e de organizações propositivas que pensem as transformações nas antigas formas de identidades sexuais, como vistas nas análises de cientistas sociais europeus e americanos logo acima. Este déficit além de ser percebido na sociedade civil organizada, também é notado nas inúmeras esferas governamentais, com forte presença na região, como visto logo acima, muito mais preocupadas com o desenvolvimento da fruticultura irrigada nas cidades em questão, do que na execução de políticas para promoção da igualdade de gênero e sexual, principalmente na esfera da educação.
Este fator evidencia a não correspondência imediata entre desenvolvimento econômico e social, como muitas vezes foi percebido por pesquisadores da Europa e Estados Unidos. No entanto, também não podemos afirmar que Juazeiro e Petrolina caminham sozinhas nesta incongruência social. O Brasil por si só é repleto de elementos que caracterizam esta disparidade, transparecendo aquilo que José Maurício Domingues chama de “modernização conservadora”. Ou seja, aquela que permite a convivência de elementos típicos de cidades modernizadas, com aqueles característicos de sociedades tradicionais, com prevalência de tradicionais elites agrárias influenciando um processo de aburguesamento avesso aos processos de democratização – no nosso caso principalmente a democracia de ideias e opiniões – e, acima de tudo, autoritário em suas raízes (DOMINGUES, 2004, p. 187-208).

Para os teóricos de visão liberal, que têm como mote central de suas propostas o desenvolvimento econômico, a industrialização eliminaria as desigualdades, não só as de gênero e sexualidade, como, também, a racial. Para esta perspectiva, a competição suplantaria a estrutura do sistema paternalista, deixando mais abertas as oportunidades de emprego, tornando as contratações e demissões mais impessoais. No entanto, tem sido de fácil constatação a persistência da desigualdade também racial. O mais problemático tem sido, todavia, entender como ela ainda persiste e opera entre nós.

Analisando a distribuição por renda e raça, segundo Edward Telles (2003), no Brasil, é possível perceber que entre os 40% mais pobres no Brasil, 52% são negros e 29% são brancos. Assim, a desigualdade racial no Brasil é refletida muito mais entre os de classe média e alta, onde é cinco vezes mais provável encontrar brancos nessa categoria. O autor também observou que entre os de faixa de renda mais alta como congressistas, entre os magnatas da mídia, executivos e médicos quase todos são brancos. Esses dados, é claro, refletirão nos índices de pobreza, onde os negros têm uma chance de mais de 3,5% em relação aos brancos, de serem pobres.

Ainda em relação à renda, e agora fazendo um levantamento mais em relação ao período de industrialização, é possível notar que a teoria dos liberais não se afirma, pois a disparidade entre os homens cresceu durante o período do “Milagre Econômico”. Entre os homens pardos, sua renda diminuiu em relação aos brancos. Em 1960 era de 57% e em 1999 de 46%. A dos pretos era de 60% e passou para 45%, em relação ao mesmo período. As mulheres pretas e pardas tiveram um aumento na renda nesse período, mas isso pode ser explicado pela melhor aplicação das leis do salário mínimo, principalmente entre as empregadas domésticas.

Consequente a essa desigualdade de renda está a educacional, pois essa relação se configura como um “ciclo vicioso”. Isso ocorre porque um trabalhador é remunerado principalmente de acordo com o seu grau de escolaridade e especialização. Mas, como os dados demonstram, os brasileiros negros não dispõem de grande parte da renda do país, ou melhor, eles ganham muito menos em relação aos brancos. Assim, a possibilidade de acesso e permanência na escola é muito inferior aos de pele clara, fechando um ciclo onde quem não tem dinheiro não estuda bem e quem não tem educação, consequentemente, não consegue bons e rentáveis empregos. Mas essa relação não é tão simples assim. O nosso sistema educacional é mais cruel do que se imagina. As escolas públicas, atualmente, têm decaído de forma brusca no que tange a qualidade de ensino, ocorrendo o inverso com as particulares. Essa qualidade tem influência direta na aprovação dos vestibulares, que tem um processo seletivo rigoroso, pelo menos entre as Universidades públicas e as de renome, não permitindo o ingresso de muitos estudantes de escolas públicas, que não oferecem a base necessária para a aprovação. Dessa forma, os negros, por serem os mais pobres, não podem pagar uma escola particular, e por isso têm menos possibilidades de ingressarem em uma boa Universidade. Paralelos a isso, ainda existem os índices de evasão escolar, que entre os negros têm uma taxa muito maior. De acordo com os dados dos homens e mulheres que completaram mais de 15 anos de escolaridade, 11,4% e 10,8% são brancos contra 2,4% e 2,8 de pardos e pardas respectivamente e 2,6% e 2,8% de negros e negras. Isso ocorre porque para a educação é necessário ter escolas disponíveis, melhor acesso e incentivos das mesmas. Somando a esses fatores, está um dos fatos mais agravantes que contribui para a grande evasão escolar: a necessidade do trabalho prematuro para a composição de renda da família. Os negros precisam trabalhar cedo para suprir suas necessidades fundamentais, e aqueles que conseguem terminar o segundo grau dificilmente estão munidos de condições intelectuais para o ingresso na Universidade. Os dados mostram que, apesar de em termos relativos, a disparidade educacional ter diminuído entre os não-brancos, em termos absolutos ela aumentou de 1,6% para 2,2% entre 1960 e 2005. Quanto aos níveis de analfabetismo, entre 1940 e 1999, o nível dos brancos caiu para cerca de 7,5% da população e entre os pretos e pardos ele foi para 17% e 21% respectivamente, mostrando que a maioria dos analfabetos no Brasil ainda são negros.

As regiões mais industrializadas do Brasil têm menor desigualdade racial em termos gerais, todavia, no topo da estrutura ela é muito maior nessas regiões. Essa assertiva se refere ao fato de que a discriminação ocorre com maior veemência quando os negros ascendem e começam a infiltrar-se em lugares que até então eram reservados aos brancos. Nessas posições fica muito mais claro o preconceito e a discriminação contra o negro, pois ele passa agora a “incomodar” e acirrar a discriminação que entre os brasileiros é quase todo o tempo escondida. É importante salientar que a evidência da discriminação, em relação aos negros que ascendem, não está apenas ligada a categorias ocupacionais. Nas Universidades, lugar ainda de brancos, mesmo com a implementação das cotas para afros-descendentes em algumas Universidades brasileiras, o negro sofre, e muito, as consequências de querer mudar o “status quo” dos brancos e ocupar lugar entre as carreiras de maior prestígio e de produção do conhecimento. O negro, na verdade, só não incomoda quando está nos lugares que a sociedade branca os relegou, como na música, no futebol, no Candomblé, entre outros. Isso sem mencionar outros lugares de incômodo aos brancos pela presença negra como restaurantes, lojas de grife, certos teatros e cinemas, alguns shoppings, entre outros.

Com a análise desses dados, e com a observação e prática no dia a dia no nosso país, é possível notar que os negros ainda estão em uma posição extremamente desigual em relação aos brancos. Aqui enfatizo a dicotomização porque os dados mostraram que tanto os pretos como os pardos estão em situação bastante inferior aos brancos em todas as categorias analisadas no Brasil, e essa interpretação é um grande avanço para jogar por terra de uma só vez o Mito da Democracia Racial, que milita em prol de um tipo brasileiro resultante da fusão das três raças (índio, negro e branco) e que constituiria todo o nosso país desprovido de preconceitos e discriminações raciais.

Contudo, é possível notar que aquela teoria da industrialização, a dos liberais, tem apenas em parte sentido. O avanço industrial aumentou o emprego da classe operária, porém não melhorou nem um pouco a desigualdade no topo da pirâmide onde se concentram os brancos. A educação também aumentou entre os negros, no entanto entre os brancos foi desproporcionalmente maior. Isso tudo reflete onde estão presentes os negros na nossa sociedade. Essa situação se agrava muito mais pelas práticas empresariais que restringem a entrada dos negros neste ambiente, principalmente nas posições de maior status, contratando na maior parte dos casos os indivíduos brancos.

Por essas e outras, é possível notar por que e como persiste a desigualdade racial no Brasil. A escravidão foi abolida, mas o negro ainda continua sendo subjugado e relegado às posições mais inferiores na sociedade, aos piores empregos, às piores escolas, aos piores salários, a piores condições de moradia e às mais inescrupulosas formas de depreciação da sua autoestima.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FRANCA, Celso. A imagem do vale: Reestruturação Agrícola e mudança social. Petrolina: Editora Franciscana, 2008.

GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais na Atualidade: manifestações e categorias analíticas. In: GOHN, Maria da Glória (org.). Movimentos Sociais no início do século XXI: antigos e novos atores sociais. 3. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
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TELLES, Edward. Racismo a Brasileira. Uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
                                                                                                              

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